
Tenho uma lembrança muito antiga de estar na praia em família, e meu tio me chamar para entrar na água. Eu fui confiante em sua direção, coloquei os pés na água, senti areia envolve-los, como se formasse um molde dos meus pés a cada passo, quando sem aviso algum o raso se tornou profundo, o nível da água foi parar no meu pescoço, me assustei, meu tio me segurou.
É tão interessante ficar no raso, sentia que tinha total domínio sobre a situação, não havia grandes riscos além de perder a experiencia da profundidade. Para quem nunca havia vivido, óbvio que me assustei, mas ter alguém que me segurou fez toda diferença.
Existe um mistério no mar, uma magia, que me convida a chegar perto, mesmo com medo. Evito ir para águas mais profundas, pois não sei nadar. O que não é verdadeiro se a água for apenas uma metáfora. Aí a figura muda, já tomei muito caldo da vida, já vivi no raso e me impedi de experimentar águas mais profundas, até que diante da existência aprendi a nadar.
Cada crise existencial uma onda mais alta a ser atravessada. Lembro que em 2004 o mundo inteiro se voltou para a natureza quando a notícia de um tsunami na Ásia chocou a todos, um fato interessante foi um casal de brasileiros que estavam no momento da grande onda e sobreviveram por um único motivo: estavam mergulhando.
Às vezes olho para a superfície do mar da minha vida e sinto desconforto, medo, insegurança, vejo ondas gigantescas, mas se me recordo de mergulhar, então encontro calmaria em meio ao caos.
Seguindo com a metáfora do mar, não posso deixar de dizer que muitos processos terapêuticos (para não dizer todos), começam exatamente assim: uma pessoa que chega ao consultório falando sobre amenidades, uma dor de cabeça, uma ansiedade, um dia difícil. O começo é raso, é da beira da praia.
Com o tempo, o paciente ganha mais intimidade e começa a falar das ondas que, de seu ponto de vista, são como tsunamis e de como é difícil atravessá-los. Ora se arriscam a ir em direção às ondas, ora voltam para o raso onde podem construir castelos na areia e se distraírem.
O fato é que como terapeuta eu os acompanho, mas sempre convido a entrarem na água. Em um lugar um pouco mais profundo, que eu pessoalmente já conheci, mas que ao mesmo tempo desconheço por não ser o meu mar e sim do meu paciente.
Nessa etapa como terapeuta, meu desafio é ter paciência, estar próximo, observando, até que o cliente decide que quer mergulhar, na areia quente os pés estão queimando, o desconforto só pode ser aliviado ao entrar na água. Então nos damos as mãos e mergulhamos.
O que descobrimos dentro do mar é um mundo totalmente novo, silencioso, não há caos. As ondas passam por nós e olhamos para elas da profundidade onde conseguimos chegar. Agora a confiança básica volta a ganhar força dentro desse paciente.
Falar de si nem sempre é fácil, precisei de uma metáfora para falar de mim, precisei chamar de mar, o que na verdade é tudo que meu coração vive e sente diante da vida. Se eu fosse nomear cada onda, das vezes em que quase desisti de mim mesmo, não caberia tantas situações em um único texto.
Sinto que abrir o coração é desafiar-se entrar na água, primeiro no raso, depois no profundo, aprender a nadar e não ser arrastado pelos tsunamis. E para isso nem sempre poderei fazer isso sozinho, que bom que naquele dia meu tio me impediu de me afogar, que bom que na vida tive e tenho pessoas que me estenderam a mão, terapeutas, amigos, família, esposa. São meus baluartes para seguir caminhando.
Que o coração aberto não se feche mais, e que aberto ele possa continuar batendo bem vivo, em sintonia com o mar da vida, com as ondas que vem e que vão e em um eterno ciclo de mudança e transformação.